Ao som do mar

Já faz dois meses que esqueci meus fones de ouvido na casa de uma amiga que mora na Austrália. É o segundo par que perco e, um pouco por estar sem dinheiro e um pouco pela vontade de me castigar por ser tão desatenta, decidi que não comprarei outro. Minha amiga vem ao Brasil em fevereiro e, até lá, seguirei minha vida sem trilha sonora.

É curioso observar como um simples acessório se converteu em uma necessidade, para mim e para tantos outros. Durante os primeiros dias caminhando pelas ruas, escutando apenas meus pensamentos e a poluição sonora da cidade, confesso que desejei trocar aqueles ruídos caóticos e desafinados por alguma melodia tranquila. Ainda assim, resisti.

Sempre gostei de escutar música. Em casa, cresci vendo meus pais se revezarem para ouvir seus CDs favoritos no rádio, e essa é uma das poucas lembranças felizes que tenho dos dois como casal. A música, realmente, faz milagre acontecer.

O poder transformador da música foi o que mais me incentivou a fazer desse hábito parte da minha rotina. Tudo é mais bonito com a melodia certa. Adriana Calcanhotto é capaz de transformar qualquer janela em quadro. Ao som de Tom Jobim, todas as praias viram Ipanema. Na voz de Ivete, toda segunda-feira é de carnaval.

Entretanto, devo confessar que, ao privar o meu dia a dia desse deleite musical, percebi o quanto o hábito de escutar música havia deixado de ser uma escolha consciente e se transformado em um escape quase fundamental para que eu conseguisse tolerar as atividades mundanas da minha rotina.

Passei, então, a questionar o porquê dessa dependência e a obrigar-me a encontrar beleza e paz em meio ao barulho. Tarefa que se revelou mais simples do que eu acreditava. Facilmente percebi que, apesar de não ser tão evidente aos olhares distraídos e aos ouvidos tapados, há beleza por todos os lados.

Ainda que Chico não esteja cantando no meu ouvido, enxergo sua poesia nas caras desconhecidas que cruzo pelo caminho. Nos beijos apaixonados, nos bêbados cambaleantes, nos pratos de arroz com feijão e nos cafés cotidianos. Vejo Gal e Djavan no azul do céu e do oceano e, quando chove, sussurro as súplicas de Falamansa na esperança de que alguém — algum outro adepto da vida sem fones — me escute.

Existe, porém, uma atividade que me recuso a realizar sem música: correr. Meu ritmo lento permite que o tédio me alcance rapidamente e, sem música, não iria longe. Talvez, um dia, consiga fazer as pazes com minha respiração ofegante — pois não há ruído mais desmotivador que esse — e me elevar ao nível dessas pessoas que correm sem fones de ouvido. Por enquanto, peço um par emprestado e corro em paz, desligando-me conscientemente da beleza do mundo para focar em mim.

Recomendo que todos que, assim como eu, se reconhecem dependentes dessas pequenas antenas realizem esse experimento. Às vezes, não são olhos atentos que nos faltam para enxergar a vida sob outra perspectiva, mas sim ouvidos.

PS: Escrevi este texto na praia, ao som do mar, dos meus pensamentos e das conversas, risadas e cantorias alheias das pessoas ao meu redor. Eu teria escrito este texto mais rápido, se não fosse pela interferência do vento soprando em meus ouvidos, dessintonizando meu raciocínio.

Jacque

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