Itacoatiara acabou

Nessa última semana, os termômetros de Niterói chegaram a marcar temperaturas acima de 27 graus. Eu, aproveitando o meu atual estado de desemprego, fui à praia todos os dias de sol que, para a tristeza dos trabalhadores, duraram apenas de segunda a sexta-feira (convenhamos que o desempregado precisava ter pelo menos uma vantagem sobre aqueles com empregos). Em uma dessas idas à praia, mais precisamente à Prainha de Piratininga, na manhã de quarta-feira, entreouvi a conversa de um casal que se bronzeava próximo a mim, e a seguinte frase dita pelo homem chamou minha atenção: Itacoatiara acabou!

Sintonizei minhas antenas fofoqueiras naquela conversa, pois queria entender melhor a que ele se referia, e o escutei dizer que, ultimamente, a praia de Itacoatiara enche sempre que faz sol, não importa o dia da semana. Por isso, passou a frequentar a Prainha. O homem reclamou sobre como já não é possível desfrutar a praia como antes, criticou a banalização do uso de drogas no local e mencionou também que Itacoatiara está perdendo sua identidade. É muito fácil entender ao que ele se refere com essa última frase.

O bairrismo não é uma mera qualidade do niteroiense: é um sentimento. Eu, moradora de Piratininga há trinta e um anos, tenho um apreço imenso por este lugar. Foi aqui que aprendi a andar de bicicleta, foi neste mar que aprendi a nadar, minha primeira trilha foi até o Sossego, minha festa de 15 anos foi um luau, todas as cicatrizes que tenho foram frutos de brincadeiras nas ruas ainda não asfaltadas do bairro… Piratininga é casa de inúmeras lembranças da minha infância, e prezo muito pelo cuidado com o bairro. Porém, ainda que eu me considere bairrista, há algo que jamais defenderei: o desfrute exclusivo do lugar.

Reclamar que a praia está cheia é, ao meu ver, uma reclamação válida — nem sempre estamos dispostos a estar em um ambiente abarrotado de pessoas, menos ainda se elas o estão poluindo com música alta e fumaça. Porém, quando essa reclamação nasce do bairrismo associado a uma crença de superioridade e de merecimento, para mim, ela perde o valor. Pagar um IPTU mais alto não dá a ninguém o direito de expor abertamente seus preconceitos. Até onde eu sei (até onde a Constituição diz), não existe praia privada no Brasil. Existem praias remotas, de difícil acesso, mas praias exclusivas não existem — ainda que alguns futebolistas tenham tentado alterar esse estado, as praias permanecem públicas.

Concordo que há praias onde o acesso deve ser regulado, com o objetivo de garantir sua preservação. Entretanto, limitar o acesso às praias metropolitanas de Niterói equivale, para mim, a tapar o sol com a peneira. É uma solução que satisfaz apenas o tal desejo de segregação e ignora os reais problemas da cidade, que envolvem mobilidade e desenvolvimento sustentável. Niterói vem crescendo em densidade populacional e economicamente, além de apresentar uma crescente melhora em sua oferta cultural e segurança pública. Porém, mesmo com os avanços dos últimos anos, ainda enfrentamos engarrafamentos em Piratininga sempre que há um acidente na ponte Rio-Niterói.

Cresci escutando que um dia construiriam um túnel do Cafubá a Charitas, e sempre achei que fosse história para boi dormir. Fui muito feliz no dia em que provaram que eu estava errada e que essa história era, de fato, verdade. Espero que aconteça o mesmo com as lagoas da região oceânica, que há anos escutam promessas de limpeza. Sinto pena das capivaras, jacarés, garças e peixes que nelas habitam, por não terem tido a sorte de nascer no Pantanal, e torço para que, um dia, suas crias não se alimentem de lixo nem nadem no esgoto.

Minha mãe me conta que, quando era criança, seu pai — meu avô, a quem não conheci — pescava camarão na lagoa de Piratininga. Em apenas algumas décadas, fomos capazes de destruir todo um ecossistema. Imagino se, quando perceberam que já não havia mais lagoa para pescar, também tenham vociferado: Piratininga acabou! Ou será que nossa indignação sempre foi seletiva?

Por sorte, ao contrário do que alguns acreditam, nossas praias ainda não acabaram — mas tudo indica que, em breve, podem acabar. Portanto, nada mais justo que todos tenhamos o mesmo direito de aproveitá-las, e de criar memórias enquanto ainda há tempo. Algum dia, nossos netos escutarão essas histórias — assim como eu escutei as histórias do meu avô — e entenderão, mesmo sem tê-lo vivido, o porquê de querermos tanto aos nossos bairros.

O bairrismo deve estar sempre associado ao pertencer, nunca ao excluir.

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